29 setembro 2014

O Carteiro



Ora e outra, sem ela determinar ou mesmo querer, isso acontecia. O silêncio a tomava de tal forma, que nada, nada era capaz de fazê-la falar. (outrora houve exceções, houve...) A manhã estava como ela, cinza, fria, e embora os carros passassem o tempo todo em frente a sua janela buzinando animados com a manhã de sábado, as crianças corressem na calçada atiçando a fúria do cão amarrado ao portão e vez ou outra um pedinte ou um muambeiro batesse palmas na frente da casa querendo algo pra comer, ou vender qualquer parafernália, a única coisa que inacreditavelmente se ouvia dentro daquele primeiro cômodo (sala) próximo a rotina gritante de vida do mundo do lado de fora era a solidão que de dentro dela, ecoava por todos os cantos da casa. Havia imergido em um dos seus costumeiros estados de si mesma. Isso acontecia do nada, de repente, do dia pra noite e quando o vazio a preenchia, não tinha nada que pudesse ocupar mais espaço dentro dela. Não, passava a ser sua resposta pra tudo. Mesmo para as coisas que ela adorava fazer, quando assim, tudo perdia a graça, a cor, o tesão. Festas, passeios, pessoas... Pra tudo era Não!

O alarme já estava tocando na quarta “soneca”. Foda-se, era sábado. Já tinha avisado a família que sairia com os amigos, e para os amigos, disse que viajaria com a família. Com sua estratégia armada, ninguém a incomodaria. Levantou uma hora depois do horário em que despertará. Foi até o banheiro, fez os procedimentos matinais e em seguida foi à cozinha preparar seu elixir (café). Colocou o cigarro já meia vida no cinzeiro e pôs a água na chaleira. Assim que começou a fervilhar e evaporar se deu por conta de que coincidentemente parecia estar vendo naquela chaleira o que estava se passando dentro de sua cabeça. Era exatamente assim que estavam seus pensamentos. Fervendo, se esvaindo e evaporando de dentro de sua mente. Aquela sensação de sentimentos misturados, emoções reviradas, desejos (des)acreditados estava outra vez e de novo, a bagunçando. E quando essa zona interna saia do seu controle, todo o seu exterior se desorganizava. Tudo parecia sair do eixo, descarrilar... Respirou fundo, e enquanto a água fervendo se misturava ao pó e começava a exalar aquele cheiro que a hipnotizava, foi tragada por sua memória olfativa antes de dar o ultimo trago no cigarro que agora não era mais brasa, mas só cinzas. (Ele detestava aquele cheiro de café, fazia sempre careta ou algum comentário contrario ao dela, quando ela dizia alguma coisa sobre os prazeres do gosto e do perfume que  particularmente tinham a combinação do aroma e sabor do café pra ela... Sorrio ainda mais largo quando por fim, acendeu outro cigarro. Pronto, agora o misto de “odores bombástico” estava feito. Uma junção detestável pra ele ter o que falar pelo resto do dia (ou da vida se ainda partilhassem da mesma), e ela contrariar por horas e horas.)

O barulho de um motor a fez por os pés no chão. Pareceu-lhe familiar, mas não deu muita atenção. Talvez o estado nostálgico a tivesse entorpecido e a feito similar. Tantas motos paravam na frente da casa dela agora, assim como carros e todos aqueles ruídos e barulhos desagradáveis que “ecoam” na porta de quem mora na beira da rua. (Ela simplesmente ODIAVA aquele lugar. Sentia tanta falta da altura da sua janela anterior que talvez nem se quisesse, saberia descrever. Sentia tanta falta do silêncio do vento, do olhar atrevido da Lua, da imponência do Sol em suas venezianas, que quando olhava da janela agora, sentia até os menores ossos de seu corpo doerem.) Segundos depois do ruído familiar daquele motor, seu coração disparou. (Estaria tendo um ataque de pânico outra vez?). Ficou confusa momentaneamente e foi caminhando até a sala em pontas de pé. A cortina era de renda branca, e se acaso alguém estivesse no portão a avistaria do lado de dentro. E àquela hora da manhã e no seu estado de espírito atual, visita era a ultima coisa que ela queria naquele momento. Uma energia a tomou por dentro fazendo com que aquele vazio que há dias a dominava fosse dando espaço a algumas sensações que agora pareciam estarem sendo despertadas. A mão que segurava a caneca, agora suava fria, o ar parecia entrar com dificuldade enquanto seu coração parecia querer saltar de seu peito opressor em busca de liberdade. Ela estava no meio da sala, fora do alcance de visão de quem estivesse do lado de fora quando algumas palmas e um grito a fez congelar e derrubar a caneca espalhando estilhaços de louça por todo o chão. Carteiro! (Caralho! Era a caneca favorita dela) Carteiro?! Foi desviando dos cacos e alcançou a cortina olhando na direção do portão. Só um minuto! (Aquela voz lhe era familiar, alias, o ronco do motor segundos antes, e a estranha sensação de presença que estava sentindo também eram. Mas não. Não era possível, não podia ser. Não havia motivo de ser!) Apanhou a chave e destrancou a porta. Os pés estavam cobertos de café. Sacudiu a cabeça sem dar importância e saiu. Ninguém! Mas que diabos estava acontecendo naquela manhã?! Olhou para a caixinha de correios presa ao portão e aparentemente não havia correspondência alguma, um pouco a direita viu a silhueta de uma pessoa e pensando então ser uma entrega, caminhou até a frente da casa. Não precisou chegar muito mais perto. A dez passos do portão cinco anos atropelaram sua visão. As pernas por pouco não lhe faltaram e se não tivesse muito acostumada com suas vertigens malucas, com certeza teria caído no quintal. Agora todos os seus sintomas eram dignos de um diagnostico promissor a“síndrome do pânico”. Mentalmente disse a si mesma mais de 10 vezes “acalma-se/respire/controle-se”. A bagunça de sentimentos dentro dela era visivelmente notável do lado de fora dele. Ele parecia estar como ela, só que do avesso.

Depois de uma breve pausa e um longo silêncio, sem contar ou cronometrar o tempo que esse momento durou, ela caminhou até ele, abriu o portão e o encarou. Se tivesse programado esse encontro, se tivesse tido um aviso, certamente teria corrido aqueles vinte metros e quase saltado as lanças para abraça-lo. Mas as coisas não são como nos filmes, entre eles, nada acontece como nos livros. Dezenas de perguntas foram se amontando em sua garganta, quase a ponto de sufocá-la. Mas centenas de outras memórias iam abrindo espaço em suas vias respiratórias e a fazendo engolir a seco tudo o que sentia vontade de falar. Conteve-se, talvez fosse cedo demais para começar a interrogar. Então através daquele silêncio ensurdecedor entre eles, o pegou pela mão e o conduziu a entrar. Sabia que que merecia uma explicação, mas é claro, não sem antes matar a curiosidade de saber, o que de fato o teria levado até lá e o que realmente o suposto carteiro teria para lhe entregar.
Por. Bell.B

17 setembro 2014

Som & Sabores

Teria sido uma tarde qualquer, um dia comum se não fosse pelo gosto que se formou em sua boca junto a saliva, enquanto olhava para aquele teto-portal e saboreava aquele sorvete. Estava ali já há algumas horas, escutava repetidamente uma play list (uma banda nova por quem, acabara de se apaixonar), viajava aleatoriamente entre os tempos a medida em que as músicas tocavam. Mas em especial, no passado. Embora adorasse o sabor do agora e curtisse muito imaginar como seriam os novos prazeres futuros, nada aguçava tanto suas glândulas salivares como o gosto do passado. Na verdade, ela era tão nostálgica, que parecia sempre ir para trás, quando caminhava adiante (e isso não era ruim, não pra ela). Detestava aquelas pessoas que usavam aquela frasezinha clichê "Quem vive de passado é museu" (Porra! Quem consegue esquecer o que já viveu, não tem moral pra aconselhar ninguém sobre o futuro). Inevitavelmente, mesmo sem querer ou poder prever, ele surgiu diante de seus olhos. Parecia ter sido pintado naquele teto cinza, que agora com sua presença, era de um azul tão vivo, que faria até céu sentir ira.

Cantarolava o refrão enquanto seus olhos sorriram. Poucas pessoas, senão somente ele, era capaz de ver aquele sorriso escondido. Como o beijo escondido no cantinho dos lábios da Wendy. Certa vez ele havia lhe dito que não importavam a quantidade de pessoas que cruzassem seus caminhos, ou por quantas vezes se desviassem, haveria sempre uma forma de se encontrarem. Também uma vez, ela disse a ele que nada, nada neste mundo seria capaz de fazer com que parecem de se comunicar. E de fato, nem mesmo o silêncio, ainda que por vezes extenso, denso, enorme, conseguia de vez os calar. Curiosamente ou sensitivamente, coincidentemente às vezes sopravam pensamentos ao céu e ou a Lua, ou uma nuvem muito linguaruda, se incumbia de entregar o recado. Muitas das vezes, por orgulho, ou por raiva, ou por capricho (e acho que na maioria das vezes era por capricho) tanto um quanto o outro, guardavam esses pensamentos. E ele crescia, (re)virava e (re)vivia tantas coisas entre eles, que acontecia de de repente eles (cor)romperem o silêncio. E quando isso acontecia, era uma invasão de sentimentos, uma mistura de emoções, uma confusão tão grande por dentro, que era preciso uma pausa, um suspiro, um tempo, até que as palavras se ordenassem para que pudessem serem ditas sem receio. Era engraçado como o tempo passava, a distancia aumentava e nada, em absoluto mudava. Ora ele aparecia na letra de uma música, noutras ela o visitava através do vento. Em algumas vezes as nuvens a encaravam com aqueles olhos fixos dele a reprovando ao fumar na janela, em certos momentos ela sorria fazendo careta através do por do sol da laje dele. Querendo ou não, estavam sempre um com o outro.

Sentiu vontade de ligar, de escrever, de contar a ele sobre as sensações que invadiram sua tarde. Queria contar a ele que enquanto degustava um sorvete de menta com chocolate, o gosto que enchia d'água a sua boca não era dos pedaços meio amargos do chocolate e sim do doce da saudade. Mas não ligou, afinal, não queria passar pela desagradável sensação de ouvir um "quem é?" e azedar aquela doçura que invadirá a sua tarde. Preferiu saborear do som e confiar que ainda existia aquela inacreditável sintonia entre eles. Continuou ali, com seus fones de ouvido jogada no tapete da sala embalada pelas canções, degustando da saudade. Fechou os olhos e se focou na presença dele, que daquele teto mágico, a olhava fixamente, como se realmente não fosse preciso ligar, escrever, falar, pra mostrar, dizer, provar que ainda sobre tudo e contudo, eles eram e pra sempre seriam... Eles.
Por. Bell.B